por Carlos Pires Leal
“Espelho mágico espelho meu: existe no mundo alguém mais belo que eu?”.
Mesmo comandando um reino, a rainha submeteu-se à revelação do espelho, que ousou contrariá-la ao informar que, dentro de seu próprio reino, alguém mais belo existia. Por que o espelho exerce tanto fascínio sobre as pessoas? O que ele pode, de fato, revelar-nos? Que importância tem a imagem refletida para a nossa vida emocional?
Para início de conversa convém dizer que as imagens não nos chegam apenas através do reflexo emitido pelos espelhos. O olhar das outras pessoas funciona também como uma fonte poderosa de informação a nosso respeito. Da forma como formos vistos por outras pessoas dependerá a maneira como nós construiremos as primeiras imagens que teremos de nós mesmos. Não só do nosso corpo, mas da nossa mente. A partir daí, formaremos a nossa identidade. Tomo emprestado o título de um livro de Artur da Távola – Mevitevendo – para expressar esta idéia: vejo-me e reconheço-me como eu mesmo através do olhar do outro. No caso do livro, o autor descreve a importância das imagens da televisão para a formação subjetiva das pessoas.
Vejamos brevemente como, para a psicanálise, as coisas acontecem desde o início. Convém lembrar, no entanto, que a psicanálise também constrói imagens sobre as experiências do desenvolvimento humano refletindo, conforme a escola, de formas diferentes sobre elas.
O olhar da mãe para seu bebê é uma das primeiras referências de que ele dispõe para sentir-se vivo e integrado. Já repararam que o bebê olha (e é olhado) fixamente para os olhos da mãe enquanto mama? O prazer e o conforto da saciedade da fome através do leite são acompanhados pela enorme satisfação de ver, ser visto e ser (re)conhecido por alguém. O olhar da mãe aplaca no bebê a angústia de sentir-se fragmentado nos primeiros tempos da existência. Entre os seis e os dezoito meses de vida descobrimos, através do olhar da mãe, que as diversas partes do nosso corpo são nossas e fazem parte de um todo. A partir desta experiência começamos a construir a nossa identidade, a experimentar a nossa fala e a capacidade de lembrar.
Assim como os espelhos podem, na dependência da imagem que refletem, ser melhores ou piores, o espelho humano – cuja imagem é formada através do olhar de outra pessoa – também está sujeito a distorções. Imagine uma mãe que esteja vivendo uma experiência de luto quando amamenta. Será impossível não transmitir ao seu bebê através do olhar o sentimento de dor e pesar. E esta dor repercutirá de alguma forma na criança. Em situações mais graves, quando a mãe sofre de algum distúrbio emocional, por exemplo, seu olhar pode transmitir raiva, decepção, confusão. Há situações em que a mãe sequer consegue olhar seu bebê, parecendo ver através dele sem reconhecer sua presença ou existência. Não é tão incomum mesmo quando adultos, sentirmo-nos olhados sem sermos vistos!
Da experiência de sermos (bem) vistos dependerá em grande parte a possibilidade de nos reconhecer como nós mesmos e, conseqüentemente, de reconhecer o mundo e os outros, tornando-nos sócios da civilização. Poder nos sentir reais é mais do que simplesmente existir: é existir para alguém de uma forma especial. É sentirmo-nos únicos, e não qualquer um. É sentirmo-nos gente e não coisa. A capacidade criativa e a possibilidade de vir a ser autêntico têm nesta experiência uma de suas origens.
Os dias atuais não vêm favorecendo o cultivo e a prática das relações significativas. Nem sempre é possível uma dedicação mais próxima entre as mães (e pais) e seus bebês. Falta tempo para que possamos nos deixar encantar e fascinar pelas crianças, pelo infantil, pela arte. Desde muito cedo as crianças são confiadas a creches e instituições onde precisam compartilhar (e disputar) a atenção e os olhares de seus cuidadores com outras dezenas de crianças. Mais tarde, nossa singularidade continuará a ser diluída no anonimato da massificação característica da cultura atual. Seremos vistos, acima de tudo, como consumidores de serviços, imagens, slogans e produtos veiculados pelos meios de comunicação de massa.
E, com a nossa singularidade não vista, nos sentiremos sós.
Se, por um lado, a cultura contemporânea e o desenvolvimento tecnológico criam empecilho para construção de identidades autênticas, abrem, por outro lado, oportunidades nunca antes imaginadas. Nunca o acervo intelectual e cultural da humanidade esteve tão acessível como agora a um número considerável de pessoas, em todas as partes do mundo. A informatização das informações e sua transmissão instantânea à distância e o baixo custo tem possibilitado isto. Nunca as pessoas puderam transitar e se comunicar com tanta facilidade. O conhecimento científico se reorganiza, os critérios de cientificidade se transformam e o isolamento entre as ciências vai cedendo espaço ao diálogo entre os saberes.
Se, por um lado, a psicanálise vem precisando rever-se para tentar dar conta do cotidiano da vida atual e das subjetividades dele emergentes, por outro lado, ela dá uma enorme contribuição à cultura ao sublinhar a importância da singularidade, da experiência de intimidade, olho-no-olho, para a construção de identidades autênticas – talvez nossa principal salvaguarda ante a ameaça de alijamento do humano.