Há aqueles que precisam sobreviver a uma grave enfermidade para empreende-la; outros, o fazem quando se dão conta da chegada da velhice; alguns somente a partir da vivência do processo psicanalítico. Há também aqueles que a empreendem quando, tocados pela chegada da primavera (ou pela contemplação de um crepúsculo, ainda que ele sempre tenha estado ao alcance da vista, mas nem sempre do coração), experimentam uma espécie de epifania. Mas os que nunca se entregam a ela são incontáveis. Refiro-me à atitude de revisar (e re-interpretar) a vida, nela entrevendo novos sentidos. A cultura contemporânea, com a pane que traz para a vida imaginativa, não facilita a sua ocorrência.

A vida atual nos impele à ação e ao fazer, em detrimento do sentir, do refletir, do criar. Apropriamo-nos cada vez menos das nossas experiências na medida em que elas parecem cada vez menos nossas. É como se tudo estivesse previamente determinado, escolhido, definido. O caráter de naturalidade desta ordem de coisas desencoraja que a coloquemos sob suspeita. Quando o fazemos nos sentimos meio estranhos no ninho, se não formos vistos como impertinentes. Ou mesmo como esquisitões. Já experimentou resistir aos pedidos de seu filho para comprar um tênis só porque ele custa o equivalente a dois salários mínimos? Ou a discordar que sua filha adolescente chegue em casa ao amanhecer? Mas é num âmbito mais específico que quero me deter. Quero falar sobre o mutismo psíquico que tantas vezes impede que nos manifestemos simplesmente por não termos o que dizer. Ou o que sentir. Ou o que pensar.

Interpretar é, antes de tudo, ser capaz nos apropriar de uma determinada experiência, esclarecendo-a, tornando-a subjetivamente nossa, passível de ser pensada e falada com a nossa voz (e não através da voz de um ventríloquo). Interpretar é poder atribuir novos sentidos ao que vivemos. Sentidos no plural pois eles são necessariamente múltiplos. Quando se tornam um, nos condenam às visões exclusivas e aprisionadoras da realidade do mundo e, mais importante, da nossa própria realidade como gente. Aquilo que corriqueiramente apelidamos de identidade. Ora, já faz mais de cem anos que aprendemos com a psicanálise que não somos um, mas vários: bicho e gente; consciente e inconsciente; coletivo e singular; neurótico e psicótico; criança e adulto. A tentativa de unificação – por vezes necessária – é uma empreitada fugaz, apenas parcialmente bem sucedida.

Liberdade e interpretação se conjugam na medida em que, ousando desconfiar da pretensa naturalidade com que as verdades do mundo – e as nossas próprias – nos são apresentadas, pudermos formular os nossos próprios critérios de verdade. Tornarmo-nos nós mesmos, em nossa plena singularidade, exige correr o risco de abdicar das lógicas do senso comum como referências de sustentação exclusivas do nosso viver.

O poeta na sua liberdade criadora, brinca com as formas rotineiras de representação do mundo. Para isto vale-se da palavra que, funcionando como isca, fisga a não-palavra que compõe a sua experiência emocional e sua percepção das coisas (como nos ensinou Clarice Lispector). A experiência psicanalítica aposta numa direção parecida. Através da interpretação convida o analisando a atribuir novas significações às suas experiências e memórias, abdicando, assim, de permanecer na mesmice marasmática do já conhecido.
O prejuízo da atividade imaginativa pelo fluxo feérico das imagens de todo o tipo aliado ao consumismo voraz, afoga a experiência subjetiva antes que ela chegue a se formular como palavra. Emudecidos, ficamos impedidos de descobrir novas formas de representar e atribuir novos sentidos à vida, (re) interpretando-a.

A conseqüência, trágica, é o sacrifício da liberdade de nos sustentarmos como sujeitos da própria vida.

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