Livro de crônicas sobre situações do cotidiano compreendidas com a ajuda do saber psicanalítico, editado pelo Laboratório de Produção Editorial da ECO/UFRJ, em 2005, com ilustrações de Rodrigo Rezende e Marcelo Zissu.

Prefácio

Carlos Doin, Psicanalista e ecritor

FREUD EM SUA MAIS COMPLETA TRADIÇÃO

 

Carlos Pires Leal segue no rumo freudiano do psicanalista por inteiro, humanista e cientista.  É daqueles que se debruçam sobre todas as questões humanas e cultivam o gosto de observar, refletir, descrever, para deles tirar lições de vida, os enredos do cotidiano em sua multiplicidade fugaz, assentada na perenidade do bicho-gente em lentíssima, vacilante e interminável escalada para a condição de anjo.

Este pesquisador arguto do dia-a-dia, “olhando o mundo com os olhos lavados de pureza, de quem vê a vida pela primeira vez”, oferece-nos agora uma coletânea de suas crônicas recentes. Pois, na tradição igualmente freudiana dos bons psicanalistas, Leal sabe verter a riqueza de seus achados em linguagem coloquial e fluente, elegante e fartamente poética, em textos curtos que se abrem a muitas leituras, das mais literais às mais profundas e transcendentes.  E assim vai dando amostras substanciosas do seu refletir sobre temas que ocupam os pensadores de todos os milênios e idiomas, que se expressam através de modelos despojados ou dos refinamentos das artes, filosofias e ciências.

Em “Palavra de psicanalista”, Leal ressalta justamente a função da linguagem, salientada desde os primórdios da psicanálise, passando logo em seguida para dimensão da palavra como metalinguagem que aponta para o que não é dito ou nem sequer se consegue dizer. O analista ouve, fala e escreve nas fronteiras em que se imbricam a letra expressa e a música da linguagem, onde o que consta das linhas serve como seta indicativa para as entrelinhas e o para o contexto da comunicação em seus diversos canais.

A riqueza e a precariedade da linguagem se evidenciam em todos os níveis de encontro e transição, notadamente na passagem de um idioma para outro, como Leal deixa claro em “Freud e sua mais completa tradução”, a propósito do esforço de uma equipe que, neste momento, procura transpor para o português o que o fundador da psicanálise nos legou no seu vernáculo alemão, cheio de sutilezas e ambigüidades.

Os textos sobre Chico Buarque e Fernando Sabino ressaltam as afinidades das artes e a da psicanálise no trato perspicaz da alma humana. “Chico cantou o feminino como ninguém (…), nos ensinou que há que penar no amor pra se ganhar no amor.” E na crônica em homenagem a Sabino: “Através da imaginação, do sonho e da fantasia, descentra-se o real que escamoteia a intangível verdade humana.”

Em uma citação do próprio Sabino, deixa resumida a necessidade das parcerias em qualquer produção da vida criativa, nos relacionamentos humanos de todo tipo, tanto nos diálogos comuns despretenciosos, quanto nos empreendimentos mais especializados: “O ato criativo, seja ele qual for, é um ato de amor. (…) É a vitória sobre a solidão, pressupõe a existência de outro, que vem a ser o leitor.”

Amor a si mesmo e ao próximo, longe de ser apenas um preceito religioso, é a chave para a vida plena, que não significa o céu na terra, mas a possibilidade de tornar mais seguro e feliz, ou menos infeliz, o percurso de cada um pelas grandezas e misérias da realidade. Ou, nas palavras do autor acerca do drama do “Tio Sukita” com o envelhecimento: “A dimensão do tempo, talvez como nenhuma outra, empurra-nos para a alteridade (…)  E é na solidão (ou por causa dela) que (…) desdobro tempo e espaço ao meu jeito. Simultaneamente não deixamos de tentar criar um tempo comum no qual procuraremos viver a experiência do compartilhamento.’’

A crise atual das relações humanas e familiares constitui tema de fundo em diversas crônicas.  Está nas “Especulações psicanalíticas sobre o dinheiro”, em que os bens materiais se mostram como fracos substitutos dos valores afetivos, a exemplo do triste episódio do filho pequeno tentando falar “economês” com o pai.  Diz Leal: “Que o estalido seco do martelo de Wall Street nos faça acordar para a essência do existir e que o meu amigo possa ajudar seu filho a inquietar-se com outras coisas para além dos índices Nasdaq. Apesar da mídia (e da cultura) continuar tentando seduzi-lo em outra direção.”

Escrevendo a respeito da perda da privacidade nos dias que correm, Leal aponta para vários outros aspectos da dialética indivíduo-meio, eu-tu-nós, pessoa e sociedade, que fundamenta o senso mais definidor e recíproco de identidade e alteridade, e se inicia nas relações familiares. “Não há você sem mim e eu não existo sem você” – resume o compositor brasileiro, na força de um verso musical, a sabedoria intrínseca desta mútua dependência estruturante, que se dá muito mais no bojo de afetos que no das idéias.

Observamos hoje em dia, principalmente nas cidades grandes, que um afrouxamento dos laços afetivos (e efetivos) de família e de amizade anda junto de uma intensificação da proximidade forçada de estranhos ou quase estranhos. A proliferação dos contactos tecnológicos e virtuais encontra aí terreno fértil, dando lugar a uma perda de privacidade sem propiciar o convívio humano verdadeiro que é condição constitutiva de saúde e crescimento pessoal e coletivo.

Versando sobre “Vingança”, nosso autor alinha, sempre num estilo leve que facilita a compreensão de temas complexos, algumas das funções individuais e sociais dos atos de represália, como a tentativa de recuperar o amor-próprio, a honra, o equilíbrio interior, o senso de ordem e justiça, a segurança e o poder  em todos os níveis, em suma  o esforço ingênuo e descabido de  extinguir todo o mal, que desgraçadamente, não é monopólio de ninguém, nem se resume a uma única face.  Esta reflexão desemboca, com um toque de humor, na “Carta ao Mr Bush”.

Em duas crônicas, Leal reflete sobre o clímax terrível do desamor em família.

Embora o mito da paz e concórdia entre parentes tenha sido afrontado em todos os capítulos de história da humanidade, fica-nos a impressão de que se instalou nas últimas décadas uma degradação crescente do convívio familiar, a carência de diálogos criativos, em que a predominância do amor é condição básica.  As tragédias gregas e shakesperianas pareciam transcorrer muito mais na fantasia que em atos monstruosos explícitos entre pessoas do mesmo sangue.  Leal examina esta questão sob o impacto de assassinatos no seio de famílias de classe média alta, onde as necessidades materiais básicas não poderiam ser invocadas para entender a eclosão de catástrofes.  Que vulcões de desespero, ódio e laivos de amor sossobrado transbordaram nos lares a que ele alude em “Assassinatos em família” e “O dia em que Quincas despencou das nuvens” ?

Mas enquanto aguardamos tempos melhores e até para abrir a possibilidade de melhores tempos, Leal aponta o caminho da “Esperança” e seus correlatos, as utopias, a fé na solução dos problemas pessoais e sociais.  Não são sentimentos e motivações piegas, sonhos trançados na ilusão, mas se alicerçam em experiências de sucesso, de sobrevivência e engrandecimento que recolhemos da história da espécie humana e de cada um de nós individualmente.  Na bela síntese de Carlos Leal: “Sonhar é coisa séria! Sonhar com dias melhores, com relações mais fraternas, com a perspectiva da paz, com a erradicação da fome (de comida e de bens culturais), é uma condição essencial – ainda que não suficiente – para conquistá-los”.

Eu poderia ir bem mais longe na esteira dos textos com que Leal nos brinda. Mas seria roubar de cada leitor o prazer inigualável do achado pessoal – aquele que brilha aos olhos do garimpeiro quando encontra um diamante no fundo de sua busca.

 

 

 

 

 

 

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