por Carlos Pires Leal
A experiência do envelhecer não é indiferente às circunstâncias culturais – e ao tempo histórico – onde ela é vivida. Ao longo do tempo o homem viveu o crepúsculo da vida das mais variadas formas, a ele atribuindo significados diversos. Vou circunscrever a minha apresentação à análise da experiência subjetiva do envelhecimento na cultura contemporânea cujos contornos foram tão bem traçados por Guy Debord no seu já clássico livro A Sociedade do Espetáculo.
Antes de prosseguir falarei um pouco sobre quantidades. Os estudos demográficos nos ajudarão a situar a população de idosos no mundo e a tendência da sua expansão nos anos vindouros.
Os dados podem surpreender:
Em 2050, o número de idosos no planeta vai triplicar, enquanto o resto da população aumentará apenas 50%. O total de homens e mulheres centenários se multiplicará por dez. Na América Latina, o número de pessoas com mais de 80 anos será quatro vezes maior que agora. Pela primeira vez na história, o número de velhos será maior que o de crianças.
A humanidade envelhece numa velocidade sem precedentes. Em 99,99% da história da humanidade as pessoas nunca viveram mais que trinta ou 35 anos. A experiência de ficar velho, de viver sessenta anos ou mais, é inédita. Em um período de pouco mais de 100 anos a expectativa de vida dobrou. Ganhamos mais de 30 anos de tempo de vida, mas, paradoxalmente, parece que não sabemos o que fazer com eles. A mesma cultura que desenvolveu os recursos que fez o tempo de vida dar um salto, criou a intolerância à velhice e à convivência com a pessoa idosa.
As pessoas mais velhas são representadas freqüentemente como bizarras, loucas ou patéticas. Em 1999, pesquisadores alemães mostraram que crianças de 4 anos de idade que nunca viram desenho animado se comportavam naturalmente quando estavam com os idosos. Aos 6 anos, depois de assistirem a vários filmes de animação, as mesmas crianças passaram a ter medo das pessoas mais velhas. Não é à toa. As histórias infantis retratam os velhos como maus, estúpidos ou horríveis. Os jovens não são os únicos que devem mudar o conceito em relação aos idosos. Os velhos também devem modificar a imagem que têm de si mesmos. É preciso amenizar o culto à juventude que predomina na cultura atual. E ele não acontece apenas com os jovens; acaba por ser incorporado aos valores dos próprios idosos que reproduzem dentro de si o preconceito e a desconfiança com que são tratados pelos mais jovens.
Embora a cultura do narcisismo e a sociedade do espetáculo contemporâneos venham atribuindo à velhice uma conotação de deterioração e obsoletismo esta não é, certamente, a única forma de concebe-la. Ser velho denota antes de tudo uma condição de precedência e anterioridade no tempo. Lembra a cada um de nós da inegociável condição de pertencimento a um processo histórico e cultural que não começou em nós e em nós não se encerrará.
O rompimento do sentido de continuidade histórica é uma das marcas da cultura atual que não tolera o angustiante contato com a humana consciência de finitude. A experiência irremediável da passagem do tempo constitui-se como uma das angústias paradigmáticas da aventura humana.
O ataque à tradição e a toda e qualquer forma de autoridade é, na cultura do narcisismo, uma das manifestações do horror ao envelhecimento. Lasch (1983) chama a atenção para o desgaste do elo geracional que, ao admitir que vicariamente vivemos através de nossos filhos e das futuras gerações, possibilita que nos reconciliemos com a própria finitude e a perspectiva de substituição. Quando somos privados desta possibilidade – o que vem ocorrendo nos tempos atuais – passamos a precisar perpetuar desesperadamente a juventude, prolongando indefinidamente a vida. Para o autor, a sociedade atual perdeu a noção de sabedoria e conhecimento, como bens que podem ser transmitidos às futuras gerações.
Em maior ou menor grau, o culto aos jovens sempre existiu. Historicamente os jovens sempre foram maioria. Já o culto moderno à juventude teve início na segunda metade da década de 40, nos Estados Unidos, quando houve a explosão de nascimentos que se seguiu à II Guerra Mundial (o chamado baby boom). Eles transformaram a sociedade radicalmente. Em quinze anos nasceram 70 milhões de pessoas. O fenômeno ocorreu também em menor proporção em outros países. Ele provocou uma revolução no consumo quando os bebês se tornaram adolescentes, porque eram muitos e tinham poder de compra. O culto à juventude surgiu como resultado desse fenômeno econômico. Nos próximos 20 anos, as pessoas nascidas neste período – que hoje detém 70 % do poder de compra – estarão aposentadas. É esta geração, segundo o filósofo alemão Frank Schirrmacher, que dará início à revolução da terceira idade. Conviria, desde já, enquanto tem juventude, vigor e credibilidade, que ela reconsiderasse o lugar do idoso se desejar evitar o acirramento do confronto entre gerações que irá vitimá-la logo adiante…Teremos de modificar em poucas gerações um modelo biológico e cultural construído ao longo de milhares de anos e nos acostumarmos com a idéia de que o mundo será dominado pelos anciãos dentro de uma a duas gerações.
Definidos os contornos demográficos da população mundial e explicitados os desafios de todos nós de prevenirmos a acirramento da intolerância entre gerações, passemos à segunda parte da minha exposição que diz respeito à Sociedade do Espetáculo e suas repercussões sobre a subjetividade.
Muitos falam, mas poucos leram a obra de Guy Debord A Sociedade do Espetáculo, citado em 11 de cada dez trabalhos sobre a cultura contemporânea. Esta obra, lançada na França em 1967, foi cultuada pela ala mais extremista do Movimento de Maio de 68 em Paris. Ainda hoje, é um clássico em muitos países.
Quais são idéias centrais da obra de Debord? Afinal o que ele concebe como espetacular na Sociedade do Espetáculo? Uma resposta poderia ser: a vida, vivida como uma encenação; uma encenação fundada na imagem. Debord explica que o espetáculo é uma forma de sociedade em que a vida real é pobre e fragmentária, e os indivíduos são obrigados a contemplar e a consumir passivamente as imagens de tudo o que lhes falta em sua existência real.
Diz ele:
Quanto mais o indivíduo contempla, menos vive. Quanto mais aceita reconhecer-se nas imagens dominantes da necessidade, menos compreende sua própria existência e seu próprio desejo. É por isto que o expectador não se sente em casa em lugar algum, pois o espetáculo está em toda parte.
A realidade transfigurou-se em imagem, e as imagens tornaram-se realidade; a unidade que falta à vida recupera-se no plano da imagem.
E sem dúvida o nosso tempo… prefere a imagem à coisa, a cópia ao original, a representação à realidade, a aparência ao ser… O que é sagrado para ele, não é senão a ilusão, mas o que é profano é a verdade. (Ludwig Feuerbach em A Essência da Cristianidade, escrito em 1841) utilizado como epígrafe da Sociedade do Espetáculo.
O espetáculo não é apenas um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediatizada por imagens. É o coração da irrealidade da sociedade real. O espetáculo é, para o autor, uma práxis social global que se cindiu em realidade e imagem.
O espetáculo é a afirmação da aparência neste momento histórico que nos contém; o espetáculo não quer chegar a outra coisa senão a si próprio. Ele submete a si os homens, na medida em que a economia já os submeteu totalmente. A primeira fase da dominação da economia sobre a vida social levou a uma evidente degradação do ser em ter. A fase presente da economia conduz a um deslizar generalizado do ter em parecer. As relações entre os homens são mediadas diretamente pelas imagens. A subjetividade de cada um não fica a salvo deste processo. O mundo mediatizado passa a interferir diretamente sobre a relação do homem consigo mesmo. Vejamos as conseqüências deste processo sobre a experiência do envelhecimento.
Os valores humanos e seus ideais não são estabelecidos por uma instancia externa nem impostos por uma entidade suprema. São criados através de interações com o outro e o meio social e passam a constituir pólos que orientam o fazer humano, estabelecem ideais e organizam as múltiplas representações sociais que os homens incorporam. O que denominamos “nossa identidade” e auto-estima tem nestes ideais um de seus pontos de sustentação e referência. É assim que a juventude converte-se em ideal, condicionando, em boa medida, nossa experiência de felicidade. É assim também que o envelhecimento transforma-se em fonte de ameaça e infelicidade, uma vez que o imaginário social o associa a fantasias denegritórias.
Na infância alguns dos personagens mais sinistros e tenebrosos são representados por anciãos. Alguém já viu uma bruxa encarnada numa mulher jovem, mesmo que ela seja feia? E o personagem do “velho da bolsa” (ou velho do saco)? Ele é invocado quando os pais se vêem na iminência de perder o controle sobre os filhos pequenos: vou chamar o velho do saco! é a ameaça proferida. O velho viria para raptar o pequeno travesso. Reza a lenda que depois de recuperada, a criança estará tonta e dificilmente esquecerá o encontro com o sobrenatural.
É verdade que, em determinados momentos da história, e em certas culturas, a figura do velho pode ser associada à sapiência e à transmissão do legado das gerações anteriores, sendo tratado com deferência e admiração pelos mais jovens. Certamente não é a imagem que predomina na sociedade do espetáculo.
Em O Velho no Espelho (poema citado no nosso livro por Rosely Peres) o poeta gaúcho Mário Quintana assim se refere ao impacto que a imagem do seu próprio envelhecimento lhe causa:
Por acaso surpreendo-me no espelho: quem é esse
Que me olha e é tão mais velho do que eu?
Porém seu rosto…é cada vez menos estranho…
Meu Deus, Meu Deus…Parece
Meu velho pai – que já morreu!
Como pude ficarmos assim?
Nosso olhar – duro – interroga:
“O que fizeste de mim?!
Eu, Pai?! Tu é que me invadiste,
Lentamente, ruga a ruga…Que importa? Eu sou, ainda,
Aquele mesmo menino teimoso de sempre
E os teus planos enfim lá se foram por terra.
Mas sei que vi, um dia – a longa, a inútil guerra!-
Vi sorrir, nesses cansados olhos, um orgulho triste…
Rosely no seu belo texto O Homem e as Marcas do Tempo lembra-nos que a construção do sujeito e sua imagem se fazem traço a traço e ela nos dá a evidência íntima de permanência, de continuidade. Quintana se surpreende com a imagem que o espelho lhe oferece. Ela não coincide com seu sentimento de ser. Sente-se invadido pelos sinais que informam sobre a chegada da velhice e protesta contra ela. A imagem do pai, esta sim, é compatível com o envelhecer. Mas nunca sua própria imagem. Em seguida, ele e o pai aparecem fundidos – como pude ficarmos assim? – indicando o início do acordo com o tempo. Acordo que não exige que ele abdique de continuar carregando dentro de si o menino que um dia foi.
O envelhecimento biológico é um processo progressivo e irrecorrível. A forma subjetiva de experimenta-lo, não. Ela é forjada através da fantasia e do sonho. E nestes registros a temporalidade e o impossível não existem. O menino permanece, teimosamente, habitando o poeta que sabe como concilia-lo (e reconcilia-lo) com o velho e a velhice. Ainda que, pela intermediação da palavra viva, o poeta disponha de recursos para promover o encontro do velho com o menino, em absoluto este é um privilégio exclusivo deles. As pessoas razoavelmente saudáveis levam junto consigo, existência a fora, a criança que já foram um dia, juntamente com a capacidade de sonhar, criar, e brincar.
Embora a morte seja a culminância do processo de envelhecimento, sua representação acabou ficando colada quase que exclusivamente à velhice – o mesmo ocorrendo com suas inquietantes significações. Este parece ser outro motivo para manter os idosos à distância: longe dos velhos, longe da morte, perto da eternidade. Mas os enaltecimentos desmesurados aos idosos pode ser uma outra forma de mantê-los à distância pois que lhe roubam a dimensão de gente.
As representações sociais contemporâneas do envelhecer em nada contribuem para a elaboração dos lutos implicados no envelhecimento – já prenunciados nos tempos da maturidade. Muito pelo contrário, passam a exigir um trabalho adicional. O trabalho de desatar-se das expectativas onipotentes de imortalidade prevalentes na sociedade do espetáculo para poder cumprir seu destino humano. Neste momento precisamos invocar e convocar Eros e mantê-lo em nossa companhia – desde que o ressentimento não o afugente. Em sua companhia poderemos revisar a vida e atribuir novos significados ao já-vivido e ao que nos espera no futuro. Esta aposta fica perigosamente sob risco na velhice. O risco de não conseguirmos reinvestir a realidade e estabelecer novos vínculos, deixando aberto um espaço onde poderá vir a reinar Tânatos, que nos faz desistir e sucumbir.
Poetas e escritores também podem desistir diante dos dilemas impostos nos tempos do crepúsculo da vida. Um deles, envelhecendo, assim se pronunciou:
O que é que você acredita que ocorre a um homem quando se dá conta de que nunca poderá escrever os livros e contos que se propôs a escrever? Não fazer nenhuma das coisas que se propôs a fazer nos bons tempos? Se não posso existir do meu próprio jeito, então a existência é impossível para mim, compreende? Assim é como eu vivi e assim é como devo viver – ou não viver.
Um mês depois de proferir estas palavras, morria com um tiro no peito o escritor Ernest Hemmingway.
O grande desafio de quem envelhece é opor a esta tendência de desagregação investimentos em novos objetos e ideais que possam substituir o que foi perdido e, assim, garantir novas formas de prazer e satisfação. Hemmingway não tolerou a dor de descobrir que não teria mais tempo de vida para realizar sua obra da forma como havia planejado. Sentindo-se impotente de compatibilizar seus ideais com os limites impostos pelo envelhecimento biológico (este, sim, não permite substituições), desistiu, em bloco, dos dois, pondo um ponto final em ambos.
Shakespeare – obrigado pela referência, Dulcinéia – dizia que não deveríamos envelhecer sem antes nos tornar sábios. Que sapiência seria esta? Creio que a sapiência de, nos tempos do crepúsculo, podermos ter conquistado um sentimento genuíno e autêntico de ser; uma imagem própria que coincida (o mais possível) com nós mesmos; que tenhamos a felicidade de construirmos acordos suficientes entre nossos ímpetos desejantes e os limites imanentes à nossa humanidade. Volto ao nosso livro, agora na companhia de Fernando Cavalheiro no capítulo sobre o Mito do Herói e do Velho Sábio. Diz ele, citando James Hillman, que a velhice significa a chegada à condição de uma imagem, a imagem singular que é o seu caráter. Segue o meu colega dizendo que a questão do caráter no idoso refere-se à relação transformadora entre aquilo que se é e a abertura para o novo. Fernando Pessoa assinaria em baixo quando afirma: Sinto-me nascido a cada momento para a eterna novidade do mundo.
A novidade, quando a velhice não é vivia como um duelo, talvez não esteja em descobrir coisas novas, mas de poder ter a coragem de vive-las mais livremente e do próprio jeito; libertando-se das imposições e dos lugares que a cultura gerontofóbica a ela reserva. A liberdade fundamental nesta etapa da vida implica no viver autêntico e na coragem de poder, finalmente, sermos o que somos. Sem tanto temor, pois já não teremos muito a perder. Diante da morte – a perda definitiva-, que outro medo poderemos ter? Pergunta Rubem Alves. Não há nada que se compare ao seu toque. Não tendo nada a perder, experimentamos a euforia da liberdade. Recebemos uma graça que pertence aos deuses: tornamo-nos invulneráveis. Podemos ser o que somos, sem medo.
Termino, como comecei, na companhia dos poetas. Aos 74 anos Hokusai (1760-1849), o maior de todos os pintores japoneses, autor de 30 mil peças, disse:
Desde os seis anos tenho mania de desenhar a forma das coisas.
Aos 50 anos, publiquei uma infinidade de desenhos. Mas tudo
que produzi antes dos 70 não é digno de ser levado em conta.
Aos 73 anos, aprendi um pouco sobre a verdadeira estrutura da
natureza dos animais, das plantas, dos pássaros, dos peixes e
dos insetos. Com certeza, quando tiver 80 anos, terei realizado
mais progressos; aos 90, penetrarei nos mistérios das coisas;
aos 100, por certo, terei atingido uma fase maravilhosa, e
quando tiver 110 anos, qualquer coisa que fizer, seja um ponto
ou uma linha, terá vida.
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*Trabalho revisado, originalmente apresentado na I Jornada Dimensões do Envelhecer da Associação Psicanalítica de Nova Friburgo, 17-18 de setembro de 2004